terça-feira, 21 de outubro de 2008

A Cidade dos Cães, filme Dogville


Gostei muito, fiquei intrigada e movida por este filme. Escrevi algo, mas o Pedro Vieira Veiga, quando ainda estudava Teologia no STBSB, fez esta resenha excelente. Aluguem e vejam o filme. Vale. Dá um bom papo.

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A Cidade dos Cães

Penso que a chave para se compreender Dogville, de Lars von Trier, está na cara, mas é difícil de enxergar. Trata-se de saber quem são os dois personagens mais importantes. Está claro que um deles é Grace, interpretada por Nicole Kidman. Mas quem será o outro? Ora, vamos lá, o nome do filme não é Dogville? Pois então, o personagem principal é aquele cujo nome está no título do filme: o cão. O fato de, durante todo o filme, com a exceção da última cena, ele ser apenas um desenho no chão não diminui sua importância – pelo contrário, só faz aumentá-la.

Esse cão, sobre o qual falamos, chamava-se Moses. Moisés é o nome do homem que, segundo o Êxodo, foi chamado por Deus para receber a lei e repassá-la ao seu povo. Mas as coincidências não param por aí: como a vida do Moisés da Bíblia, a vida do deste Moisés não era fácil. De fato, ele era mantido com fome para que proporcionasse mais proteção contra os estranhos. E foi isto que ele fez, chamando a atenção de Tom, quando Grace entrou no vilarejo e roubou-lhe um osso. Mas Tom, ao invés de auxiliar o cão, que, cumprindo bem a sua função, latia de uma maneira diferente, recebeu Grace e abriu as portas de Dogville para que ela lá permanecesse. E Grace – o presente, o favor imerecido – detonou um processo que culminaria no fim desta comunidade.

Mas como, e por que isto aconteceu?
Não deve haver dúvida de que os cidadãos de Dogville eram figuras mesquinhas e repulsivas. Isso fica claro na análise que o próprio Tom faz de todos eles. Mas a comunidade funcionava. Eles não se feriam – pelo menos não de maneira muito atroz – e encontravam proteção na companhia uns dos outros. E isso só acontecia por um único motivo: a lei, faminta e encurralada, era ferocíssima naquele lugar. Assim, as barreiras eram mantidas e o caos era impedido de se instalar. Mas Grace desfez este sistema. Grace não vivia pela lei – ela era totalmente misericordiosa e boa. Não importa que mal lhe fizessem, Grace sempre estava disposta a perdoar.

Inicialmente, os habitantes de Dogville sequer pensavam possuir em suas vidas um espaço para acomodar tal atitude. Mas, cedendo à insistência de Grace e Tom, acabaram descobrindo algo inesperado. Era como se aquelas barreiras impenetráveis que haviam regido suas vidas simplesmente não existissem em torno de Grace. A sensação de liberdade que eles passaram a ter ao seu lado enchia-lhes o coração de alegria. Enquanto essa situação durou, Dogville nunca foi tão feliz.

Mas então algo mudou. Sem as barreiras, essas pessoas descobriram que estavam livres não apenas para gozar do que era bom, mas que estavam totalmente livres diante de Grace. Nada que eles pudessem fazer, por mais terrível que fosse, por ela seria recriminado. E então essas pessoas, diante dessa nova possibilidade que antes lhes estava absolutamente interditada, escolheram morder o fruto. Não foi sequer necessária a presença de uma serpente para incitá-los a fazê-lo. E Grace sofria terrivelmente.

De qualquer forma, mesmo essas pessoas ainda possuiam alguma essência de humanidade e, quando confrontadas com a situação, perceberam que não era possível continuar daquela maneira. E foi assim que Grace – para o grande espanto dos cidadãos de Dogville – foi confrontada, ela também, com uma escolha. Deveria ela novamente perdoar todas aquelas pessoas ou será que era chegada a hora de castigá-las de alguma forma? Inicialmente, Grace pretendia permanecer em sua postura absolutamente misericordiosa, mas seu pai chamou-lhe a atenção para o fato de que a convivência se tornava insustentável ao lado de uma pessoa com valores morais tão altos como os dela. Isso fez Grace refletir. Assim ela percebeu que, de fato, aquelas pessoas haviam feito seu melhor. Contudo, o seu melhor fora algo terrivelmente abominável. Aquelas pessoas, como apenas o pequeno Jason havia percebido muito antes, mereciam ser castigadas. Grace não quisera castigar Jason e por isso o castigo caíra sobre ela mesma, mas agora ela aprendera a lição. E assim, Grace, da mesma forma que limitara os poderes de atuação da lei, roubando-lhe o osso, entregou aquelas pessoas nas suas mãos.
Moisés, por fim, é o único que permanece vivo em Dogville, afinal ele ainda tem um papel a desempenhar: quando alguém por fim chegar àquele lugar encontrará nele o testemunho vivo do que irá acontecer àqueles que fazem pouco caso da lei.

Apesar de ser fundado sobre a dicotomia entre graça e lei, não penso que o filme de Lars von Trier seja uma alegoria legalista ou puritana. Muito pelo contrário. Trier quer mostrar que o legalismo, por si só, serve apenas para encobertar pessoas que são como feridas abertas em uma sociedade. Ele parece querer argumentar que não basta vivermos apenas pela lei, mas é necessário que vivamos também pela graça, ou seja, pelo perdão e pela misericórdia. Caso vivamos apenas com a lei, os valores maus – aqueles que ofendem os que estão ao nosso redor – facilmente se multiplicarão e infectarão toda a sociedade, enquanto ela continua vivendo sobre uma fachada de paz e cordialidade. Se andarmos apenas com a graça, esta proliferação também ocorrerá, só que na forma de um caos generalizado. Contudo, se andarmos com a lei e com a graça, a lei manterá a estrutura firme e a graça combaterá qualquer rachadura interna que possa surgir neste edifício. E é isto que Grace descobre naquele momento em que a luz lhe revela a extensão do mal que se fortalecera naquela lugar enquanto, através dela, a lei fora banida quase que completamente das consciências.

Por outro lado, o valor deste filme não para por aí. As referências à mitologia, à literatura e à consciência comum em geral são muitíssimo bem amarradas. Por exemplo: não seria Vera, mãe de Jason, uma Medéia moderna que, ao quebrar os sete bonecos de Grace, sentencia à morte seus sete filhos? E o que dizer do fato do senhor Thomas Edison estar sempre lendo Tom Sawyer de Mark Twain? Isso para não falar das particularidades que o filme tem com The Grapes of Wrath de John Steinbeck.

Pedro Vieira Veiga

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